terça-feira, 5 de abril de 2011

Todos os sonhos de Mike



   Mike acorda, abre os olhos, se olha no espelho do guarda roupas e não vê seu corpo. A confusão de cobertas, travesseiros e ele em sua cama, lhe permite enxergar apenas sua cabeça. Era como se todo o seu corpo estivesse sumido. 

    Sorri um sorriso de lamento e autodesistência. A essa altura, era sua verdadeira imagem, a que todos enxergam e que se tornou latente mesmo diante de seus esforços para escondê-la, que lhe encarara.

    Gastou quantidade considerável de tempo para escovar os dentes. Queria limpar sua boca, queria que fosse suja. Enfiar a escova pelas veias; canais de imundície que transportariam o combustível da maldade. Escovar os cantos do cérebro, que bendito seria, se fosse um depósito da escória que ele não possuía. E quem sabe num gargarejo cuspir toda substância na pia. Não havia, e se houvesse sujeira, estaria depositada na falta de uso, nas estantes empoeiradas de sua inércia.

    Mike era um vácuo. Nunca se sentiu preenchido de vida, não se lembrava de qualquer empolgação escalar alguma vértebra sua. Não possuía arrependimentos, nenhuma de suas ações lhe custou consequências maiores que resignação.

    Hoje, especialmente, decidiu tomar seu café da manhã fora. Ao abrir a porta de casa percebeu o sol no rosto, não por acaso, fez sombra nos olhos com uma das mãos e por um instante avistou a vizinhança, como terra firme. Mães levavam as mochilas de seus filhos até o carro. Um casal conversava sobre o que iria fazer a noite. Uma vizinha fazia Cooper enquanto levava o cachorro para passear. Sr. Arnaldo, o dono da padaria no final da rua, colocava as frutas frescas na calçada para a venda.

Pensou, “De hoje não passo.”

    A um passo da escada do alpendre de casa, resolveu despender a mesma quantidade de energia que usou para dar qualquer passo em sua existência; nenhuma. Sendo assim, mãos brotaram do solo e dos degraus da escada. O seguraram com todo cuidado (ou Mike protestava) e foram o levando até seu destino; a padaria. Entre as mãos, que eram muitas, várias lhe eram familiares: as de sua mãe e pai, suas professoras, seus treinadores dos esportes que era obrigado a praticar, seus amigos, suas poucas e rápidas namoradas e seus patrões. Também havia algumas das quais não conseguia se recordar. Percebeu que o acaso e a sorte já cruzaram seu caminho mais do que gostaria.
    O deixaram suavemente na cadeira de madeira que fazia jogo com a mesa ao lado da grande janela que tinha como vista a rua de seu bairro tranquilo onde os vizinhos não se intrometiam na vida uns dos outros. Mike brincava de adivinhar o que as pessoas estavam pensando sobre ele, era uma das poucas coisas que o divertia, mas as conclusões à que chegava, quando estava certo de que sua adivinhação condizia com a realidade, não.

- Bom dia Sr. Mike. O de sempre? – Disse Sr. Arnaldo, sem esperar resposta.

De tão desconhecido, a vizinhança já sabia seu nome.

- Bom dia. Hoje vou querer um pão de queijo, um pão passado na manteiga e um cappuccino duplo, por favor.

Não era o de sempre, Sr. Arnaldo estranhou. – Pra viagem?

- Não, vou comer aqui mesmo. Mas gostaria de levar alguns sonhos, o senhor tem sonhos?

- Certamente Sr. Mike, dos melhores e fresquinhos!

“Eu não”, pensou Mike. – Ótimo, vou levar alguns.

    Comeu, pagou e ao ser-lhe entregue o saco com os sonhos, reprimiu o esforço do Sr. Arnaldo em tentar estabelecer mais intimidade fazendo perguntas sobre a nova vizinha, com um: – Não, não vi.

    No caminho para sua casa deduziu que a vizinha de quem Sr. Arnaldo falava era a moça do Cooper e do cachorro, ela estava voltando e provavelmente iria cruzar seu caminho. Em Mike restavam poucas energias sociais, já que a conversa na padaria exigiu um tremendo esforço. Portanto tratou de rejeitar a ideia em sua cabeça de oferecer um sonho a ela e se agarrou na chance de seu cachorro não gostar de uma aproximação e tentar mordê-lo. Assim estava feita sua desculpa autoindulgente. Eram essas pequenas possibilidades de falhas que o ajudavam na tarefa de não se arrepender, afinal de contas, “Com um cachorrão daqueles, é melhor eu me manter longe”, pensou.

    Convenceu-se de que estava fazendo a coisa certa e diminuiu o passo, quebrando a trajetória que o levaria, com certeza, ao feroz ataque de um Basset. A vizinha passou por ele com o cachorro ao longe e lhe apontou um sorriso amistoso. O cachorro não, porém não rosnou. Mike retribuiu o sorriso (agora sim estava exausto) e continuou seu caminho. Antes de ligar seu carro, estacionado na porta da garagem de sua casa, ainda pensou “Se não fosse esse maldito cão!”.

    Mike não era feio nem bonito. Não era alto muito menos baixo. Tão pouco gordo e sequer magro. Um pesadelo de descrição para qualquer profissional da perícia policial. Um legítimo cidadão mediano, não fosse medíocre. As características que o definiam psicológica ou fisicamente se escondiam de qualquer um que tentasse se aproximar em algum desses aspectos. Então restava aos vizinhos caracterizá-lo com atributos externos a ele. Ninguém o conhecia tão bem para saber seus gostos, mas isso era compensado com a informação, já pública, do que ele não gostava: conversar.

Ligou o carro e partiu para o trabalho.

    No caminho ganhou a percepção aguçada do último dia. Um bônus, que o deu algo para sentir. Não era saudade, nostalgia ou esperança. Convenceu-se, sinceramente, que não estava perdendo algo. Até para ele essa decisão era muito difícil. Suas desculpas autoindulgentes não eram o suficiente para fazê-lo lançar-se no desconhecido.

    A decisão não foi tomada hoje. Mike já se esforçou em participar de algo, tentou algumas religiões que, cumprindo bem seu papel social, o fizeram parte de um todo. Durante algum tempo, um grupo social o acolhia, se importava e lhe dava uma função, mas não um sentido. A fé não foi o suficiente para preencher a imensa lacuna de respostas das quais ele necessitava.

    Durante o caminho avistou um moleque que pedia esmolas no sinal. Passou direto sem olhar para o garoto (mas não sem o vigiar). Parou o carro adiante, onde era permitido e o chamou.

    O menino, empolgado com a possibilidade de ganhar uma gorda esmola, não pensou nas possibilidades de falhas. Se tivesse um rabo, chegaria abanando-o. Mike respirou fundo e se encheu de energia suficiente para disfarçar um sorriso de simpatia. Todo o esforço porque, afinal de contas, queria fazer o garoto se lembrar do que é importante na vida. Talvez o garoto lhe fizesse lembrar também. Pensou em dois argumentos para manter uma conversa, o primeiro deles era mais fácil.

- Ei tio, tem uma esmola aí?

- Tenho. Toma aqui é toda sua. – Mike entrega uma nota de 100 para o garoto.

- Caralho Tio! Quer que eu dê uma limpeza interna?

- Não obrigado, eu mesmo estou limpando-o. Está com fome?

- Tô!

O segundo argumento lhe exigia um pouco mais de tato.

- Eu tenho sonhos garoto, você tem?

- Não tio, me dá um?

- Dou, mas não estou falando desses sonhos aqui, estou falando dos desejos que tem na sua vida, você sonha com o que?

Mike entrega um sonho de padaria para o moleque.

- Ah, com muita coisa, ser rico! Ter família. Sair dessa vida ruim. Sumir de vez.

    A ordem dos desejos do garoto trouxe em Mike um sentimento de identificação pelos tempos em que ele próprio tinha as mesmas prioridades. Porém tão logo Mike deu alguma importância à ele, o sentimento se desfez no ar quando o garoto o perguntou:

- Você é rico?

- Não. – Disse sem relutância.

    Também não era pobre. Mike tinha a mesma relevância para a economia de uma cidade, que costuma ter para as pessoas que o conhecem, nenhuma. Por outro lado, ficando tanto tempo em um emprego, sendo solteiro e gastando tão pouco com supérfluos não é de se estranhar que tenha uma vida confortável. Carro, dinheiro para viagens e casa de aluguel por escolha.

- Porque quer sumir?

- Não gosto desse lugar, aqui tem muita gente que só pensa em se aproveitar ou fazer mal aos outros. Não entendo isso.

- Qual seu nome garoto?

- Já devia saber.

- Olha Rapaz, você ainda é muito novo pra desistir dos seus sonhos. Pedindo esmolas, vivendo à margem da sociedade, não vai conseguir alcançá-los. Cadê sua família? Você tem casa?

- Tá, olha muito obrigado pela ajuda, acho que tenho que ir agora, vou comprar um café.

O garoto começa a se afastar deixando claro que não queria mais intimidade.

- Calma, não precisa se afastar, não vou te dar os sermões de sempre. Te dei uma nota de cem para que você escutasse o que eu tenho a dizer, pode ser?

    Mike não queria que o garoto o deixasse aquilo estava ficando interessante. E em um desses momentos onde um arroubo brilhante de criatividade transpassa o cérebro tão rapidamente, que ao percebermos seu aparecimento, como um raio, há tempo suficiente apenas para se agarrar no todo. E apenas isso já nos faz perceber sua imensa importância, de tão lógica e coerente com o contexto que vivemos é essa idéia. Tão clara e concisa que apenas seu rastro já é o suficiente para nos enchermos de um orgulho soberbo; daqueles que só possuem os grandes de espírito e conscientes disso.

- Hum...

- Olha garoto não tenho sonhos. Nenhum. Os que me fez lembrar que eram meus antes já não são mais. E a maioria deles já era para eu ter alcançado. Portanto vamos fazer o seguinte eu troco um dos que você tem, por esses que eu tenho.

- Hahaha, quer um sonho de verdade por um sonho de padaria?! Nada feito! Meus sonhos de verdade valem muito mais!

- Você não vai usá-los e considere isso uma doação, você me dá um sonho e fica com a lembrança de cumprir os seus. Além do mais, me dando um sonho seu, não o perde, ele apenas se duplica em mim, você ainda pode realizá-lo. Ok?

- Hum, ok pode ser, vamos ver aqui qual sonho tenho pra você. Você viaja muito?

- Não

- Hum, tem esposa, filhos, namorada?

- Não

- Gosta de quê?

- Olha garoto, assim não vai funcionar, são seus sonhos! Escolhe um e me dá, tá aqui o seu!

- Opa, dá aqui!

- Então?

- O garoto ainda mastigando diz: - Faz o seguinte, tenha um filho e se prepare para ele, dê muito carinho, amor e o eduque bem, faça ele feliz. Pronto.

- Ok, obrigado. Olha tenho que ir trabalhar, a gente se vê. Mas considere esse sonho um símbolo de que você terá que cumprir o seu... Obrigado.

    Apesar da aparente indiferença Mike ainda estava soberbo com a faísca criativa que se estalou no seu caminho. A conversa com o garoto e a idéia de compartilhar ou trocar sonhos foi repentina. E com os dados que já dispomos, qualquer um poderia supor que ele não fez disso parte de um planejamento anterior. A idéia e a ação vieram tão bruscamente que Mike não teve o tempo necessário para, além de entendê-la, decidir se é uma ideia estúpida ou não. Assim se livrou do garoto o mais rápido possível usando o que já era quase automático em sí, a indiferença.
    Depois de deliberar consigo no caminho para o trabalho venceu a discussão com suas características predominantes, como a autoindulgência o pessimismo e a preguiça social, com uma única frase que, nesse dia, era a única chance de usá-la: “O que eu tenho a perder?”.
    Mike estava dividido. O motivo era óbvio, uma empolgação juvenil com uma tarefa a cumprir o deixou excitado, querendo executá-la logo. Queria pessoas, trocar os sonhos reais delas com os únicos que ele possuía. Claro que essa sensação não veio somente pela diversão de cumprir sua decisão. A excitação que Mike sentia vinha em grande parte da natureza dessa tarefa e da possibilidade que ela tem de jogar alguma esperança sobre sua superfície insípida.
    Já havia decidido trabalhar, não mudou de idéia. Chegou à sede da empresa e foi para o 14º andar num prédio de 28. Conversa com poucos colegas de trabalho, somente aqueles que têm por Mike pena e paciência suficiente para tratá-lo como um pseudo depressivo. Pensavam que ele não tinha muito do que reclamar, um emprego honesto, uma vida estável e saúde. Para a grande maioria das pessoas isso era suficiente para, pelo menos, cimentar as bases da felicidade.
    O que ninguém percebia em Mike era que justamente esse vazio entre o básico que muita gente, inclusive ele, possuía e o máximo que ele poderia querer, o incomodava profundamente. A ponto de acabar com suas esperanças de alcançar. Para ele as pessoas que não possuíam o básico passam a vida lutando para alcançá-lo e quando alcançam podem tomar isso como felicidade. Também há aquelas pessoas que já possuem o básico e lutam para alcançar o máximo; empregando o mesmo raciocínio temos o mesmo resultado. E ainda existem aquelas que alcançam o básico e buscam o máximo, essas eram curtidas em ambição, perseverança e vida.

E como é razoavelmente fácil de perceber, Mike era um vácuo.

    Talvez essa constatação viesse de seu inseparável sentimento de inadequação. Já não era fácil ser uma criança com nome estrangeiro e continuou difícil quando se juntaram a ele a certeza de não entender porque as pessoas agem da maneira que agem. Ele não sabia seguir as convenções sociais. Só aprendeu o suficiente para conseguir sobreviver, fugia de qualquer tarefa social mais complexa. Há 35 anos Mike era como um estrangeiro recém chegado, só se ouvia dele sentenças básicas e concisas da língua. Desconfiava de relações mais íntimas, e fazia questão de demonstrar isso.

Era metade da manhã tempo suficiente para entendermos porque Mike já havia desistido de sua vida.

- As vezes, não precisamos jogar fora, é só reiniciar.

    O computador de sua mesa costumava dar defeito. Hoje Mike achou que não tinha mais jeito, porém o técnico chegou á tempo de impedir que Mike jogasse o computador no lixo. Ele desistia fácil diante de obstáculos, e podemos fazer dessa, uma afirmação que generaliza quase todas as suas ações até hoje.

Mas a frase do técnico fez Mike incluir mais uma opção para si mesmo. E se reiniciar fosse a solução?

    Não que, especialmente hoje, a vida de Mike se encheu de metáforas e despejou em cada conversa um sentido diferente para sua existência. Na verdade, era Mike que estava diferente, o bônus que ganhou no dia de hoje o fez altamente receptivo a novas percepções. Talvez os simbolismos nas conversas estivessem sempre lá e ele não percebeu. Também com tão poucos exemplos de uma boa conversa ele estava estatisticamente desfavorecido. Talvez seja esse o grande segredo, saber perceber as dicas que a vida lhe dá. Ou pode ser a vida lutando para não se extinguir de dentro dele, num impulso supremo de autopreservação, imprimindo um pouco mais de dimensões e escalas aos olhos, coração e mente de Mike.
    Mas Mike não era otimista. Chegou a conclusão que estava passando por um efeito comum a si mesmo: quando passa uma semana se decidindo a cortar o cabelo, no dia do corte, seu cabelo acorda bonito e vistoso, quase o fazendo mudar de idéia. Ele tratava a vida como sendo exterior a ele. Uma força que o manipula como bem entende. E para a diversão dela, sempre que tomava uma decisão, a brincalhona o fazia quase mudar de idéia, quase mudar o rumo do caminho que havia traçado, pouco tempo antes de segui-lo. Assim como o cabelo é mais bonito antes de cortar, a vida de Mike se tornou mais rica antes de terminar. Porém, como cometer suicídio todo dia?
    Essa sensação ele só teria hoje e não era o suficiente para compensar os trinta e cinco anos restantes. Então o que ele poderia fazer é aproveitar o melhor disso até acabar, assim sendo, sua idéia se encaixava perfeitamente.

- Você tem sonhos?

- Tenho alguns ainda. Por quê?

    Felipe não estranhou a pergunta por que, não o conhecia o suficiente para esperar algo. E isso traz para Mike a liberdade de não ser cobrado. Espera-se que um louco diga loucuras, que um comediante conte piadas e que um padre fale sobre Deus. Se um deles frustra nossas expectativas achamos estranho. O que constrói a anomalia é a sucessão da normalidade e vice e versa. Uma das poucas vantagens de Mike é ser uma tela em branco, ninguém sabe o que esperar. Não é estranho porque não é normal.

- Também tenho alguns, quer fazer uma troca?

- Como assim?

    Mike não usava drogas, apesar de ter usado durante pouco tempo, percebeu que elas encurtariam sua vida antes do que ele gostaria. Triste ironia hoje. Aprendia rápido, tinha um bom raciocínio lógico, que usava de maneira quase artesanal para tecer uma comunicação necessária e suficiente para ser entendido, não mais que isso. Explicou sobre o que estava fazendo com os sonhos. E depois de ouvir algumas opções do técnico como, criar algo novo e imensamente lucrativo na internet, vender quando chegar a 10 bilhões de dólares, pular nu na piscina da cobertura ao lado, e criar uma maquina que gela tão rápido quanto o microondas esquenta. Achou que inventar um sistema em rede de ajuda financeira á países pobres era o mais razoável deles.
    Mas o técnico não era tão discreto quanto Mike. E apesar de sabermos que não é aconselhável compartilhar de sua insipidez, o caso do técnico era que extrapolava o oposto. Com isso, todo o andar ficou sabendo que Mike estava trocando sonhos de padaria por sonhos reais.
    Uma quantidade imensa de pessoas (cinco ou seis) se aglomerou na mesa de Mike para fazer a troca. Era quase hora do almoço, muitos só estavam com fome e alguns interessados no que Mike queria dizer. A única unanimidade da reunião extraordinária era a curiosidade.
    Mike previu que ia ficar sem sonhos, portanto definiu e anunciou algumas novas regras. “Um minuto, por favor, vou receber todos os seus sonhos por escrito, e selecionar entre eles o mesmo número de sonhos que ainda me restam. O critério de seleção será... pessoal, e á medida que me decidir por alguns sonhos vou entregando os meus próprios. Quem se interessar pode deixar seus sonhos em minha mesa, nessa caixa. Vou sair para o almoço, bom apetite a todos.”

    Mike não tinha nada planejado para seu último almoço, contudo não achou isso o uma absurda falta de planejamento e ineficiência. Não há o que se lamentar, não tinha um prato favorito e tão pouco algum que achasse mais especial que o de sempre. Na verdade ele achava o de sempre o mais especial, pois o comia todo dia. Então, apenas para se livrar do peso que pode deixar sua alma presa á terra até pedir um prato diferente, pediu uma massa.
    Não era o de sempre. Tentou achar algum simbolismo no fato de pedir massa. Desistiu. Sorriu. Mike estava de bom humor.
    Voltou ao escritório para descobrir se alguém havia deixado algum sonho, sentou, colocou a caixinha no colo, olhou para os lados e todos estavam o olhando com olhos esperançosos, grandes e brilhantes. À principio, Mike ficou preocupado com a possibilidade de alguém ter deixado uma bombinha ou uma surpresa humilhante dentro da caixa, apesar de não estar mais no colégio. Tão logo não se preocupou mais com isso, abriu a caixa. E estava lotada de sonhos, muito mais que os seis ou sete anteriores.
    O trabalho de filtro, classificação e seleção tomou boa parte de seu horário da tarde. Já possuía bastante material para compor uma lista: matar o chefe, ganhar na loteria, paz mundial, fim da miséria, comprar um iate, helicóptero, avião, matar o vizinho, ser um astro do rock, cinema, TV, ser presidente da empresa, explodir o prédio da empresa. Na verdade Mike tinha material suficiente para classificá-los por temas. Matar pessoas famosas e superiores; ser outras pessoas, geralmente famosas; bens de consumo exagerados; causas nobres; mudanças estéticas, que incluem membros adicionais e etc. Essa lista possuía todos os sonhos descartados por Mike, obviamente.
    Do lado esquerdo colocou os sonhos que se classificaram segundo os seus critérios. Também definidos por categorias: viagens, noitadas, vandalismos em grandes corporações, coisas que você nunca fez, fantasias sexuais, entrar para o Guinnes Book de alguma forma, mudanças estéticas possíveis, fazer ou participar de filmes, musicas, livros, quadros, esculturas e desenhos. Mike tratou estes com mais carinho e até pensou na possibilidade de realizá-los. Também achou desperdício tantos sonhos que nunca chegarão a existir em outros lugares que não seja imersos no formol que ocupa a mente dos preguiçosos, onde se mantém intactos até sua morte.

Continuou vasculhando a caixa e encontrou uma chave.

    Mike ficou bastante confuso sobre quem poderia ter colocado e o seu significado, mas achou normal, depois de uma ação incomum dessas, alguém não perder a chance de se aproveitar da situação.
    A chave lhe pareceu familiar, pois já fazia parte de seus planos. Inicialmente Mike pensou em subir até o terraço do prédio e pular. Na verdade essa era apenas uma das varias formas de morrer que lhe pareceu considerável. Remédios e pulsos abertos não lhe interessavam pelo seu caráter lento e sofrido. Da mesma forma fogo, afogamentos e enforcamentos. Tiros ou atropelamentos intencionais impossibilitavam caixões abertos. E quando Mike se perguntou por que estava preocupado com um caixão aberto ou não, decidiu-se por uma morte condizente com sua vida, deixando-se levar. No caso, pela gravidade.
    Para subir até o terraço ele teria que conseguir a chave, que tranca a porta de acesso, com o zelador. Claro, isso não o impediria e seu plano B era simplesmente se jogar da janela. Mas agora que tinha chave, poderia usufruir de uma morte mais digna, pensou.
    Mike agora tem em suas mãos a caixa mais paradoxal que já teve contato. E as questões contidas nela, falham miseravelmente em complexidade perto do que está lidando em sua cabeça.
    Com pressa, Mike distribuiu aleatoriamente seus sonhos de padaria restantes para algumas pessoas de quem havia gostado dos sonhos. E em menos de quinze minutos estava descendo de elevador, até o zelador, que ficava no subsolo e era o principal suspeito de colocar a chave na caixa.

- Veio rápido Mike. - Disse o zelador.

- Estava me esperando?

- Eu e você gostamos de ser sintéticos então pulemos as perguntas inúteis e vamos direto ao que interessa. Sei o que planeja. A chave que deixei se encaixa melhor do que todos os outros sonhos. Não acha?

- Me conhece? Porque fez isso?

Conheço você tão bem quanto me conheço. O seu coração vazio, seu olhar vazio, sua vida vazia; tudo isso me é bastante familiar.

- Quem é você?

- Somos uma sombra. Eu e você somos observadores da vida. Expectadores invejosos que se corroem com a felicidade alheia por não compreenderem porque não tem a mesma sorte. A única diferença entre nós, é que você nunca vai chegar a ser o que eu sou.

- Olha me desculpe, mas você interpretou mal. Não era bem isso que pretendia...

- Mike, a chave só foi a minha opinião entre as outras que deve ter visto na caixa.

- Não estou entendendo. Porque me quer morto?

- Sei que pretende se matar. E o meu conselho á você através da chave é que faça isso.

- Como sabe?

- Porque se não o fizer, eu faço Mike.

- Eu devo estar muito louco hoje.

- Ambos estamos, mas te entendo, não está acostumado a lidar com essas coisas.

- E não vou me acostumar não é mesmo?

- Mike, não desperdice o amor de ninguém. Nem o ódio. Não faça alguém assoprar cinzas ao mar tentando alguma ligação com você. Nós dois sabemos aonde isso vai dar. Não é por acaso que teve que descer até chegar a mim. Confesso que pensei na possibilidade de você, ao invés de se matar, matar a todos no prédio por ódio. Mas esse sentimento eu sei que você...

-... Não tenho, já sei! Puta merda...

- Escute, saia de seu lugar de conforto, onde quem não interage com a sociedade não tem responsabilidade sobre ela. O seu alheamento é parte integrante do todo, mais cedo ou mais tarde vai perceber. E você não tem nada de bom a oferecer, sua interação só pode ser maléfica.

    Mike não sabia como lidar com isso. Para ele eram tantos sentimentos, e em tal variedade, que seus receptores, quase virgens, não agüentaram o fluxo intenso.
    Mike tinha em uma Mão a chave e na outra a caixa cheia de sonhos trocados. Olhou para uma de cada vez sem pressa. Apertou forte a caixa e a chave em suas mãos. Fez uma pausa. Abaixou a cabeça e disse:

- Você tem razão.

    Era a vida se mexendo dentro de um caixão. E Mike sentiu isso. Sentia fisicamente como uma overdose de adrenalina que fazia todo o seu corpo tremer. Como segurar uma faca após matar alguém com ela. Ou como encarar a morte face a face e escapar sem explicação. Um momento, suspenso do mundo, que lhe conforta antes que a realidade lhe inunde.
    Mas Mike já estava farto desse lugar, foi movido pelos seus músculos intensamente até voltar para as escadas. Chegando lá, subiu decididamente até o vigésimo oitavo andar sem parar. Mike suava e se deliciava. Mal conseguia respirar e estava em êxtase. Suas pernas doíam tanto que mal lhe mantinham em pé, mas era assim que sabia que ainda continha vida. Estava raspando a panela.
    Chegando ao seu destino existiam duas portas, uma de frente a outra. Mike tentou abrir uma com a chave e não conseguiu, tentou a outra porta e a chave a abriu.
    Sentiu o sol no rosto, não por acaso, fez sombra nos olhos com uma das mãos e por um instante avistou o sol se pondo no horizonte delimitado pelo parapeito do prédio.
    Mike respirou fundo e, mesmo com as pernas doídas, arrancou. Correu com tal dedicação que as mesmas mãos que brotaram do chão de manhã precisaram surgir novamente tentando o impedir de pular. Porém foram ignoradas pelas suas pernas como se tivessem a mesma força de atrito que gotas de chuva. Mike sentia tanto vigor em seu físico que se gabou em saber que tinha muito mais força para aplicar do que precisaria para o salto.

E saltou. Ainda segurando seus sonhos.

    Teve tempo de ver a rua entre seu prédio e o prédio vizinho e a janela logo abaixo. Olhou para cima viu o céu. Fechou os olhos e caiu em silencio.
    Mike tinha razão, a vida era externa a ele, ele nunca a possuiu. Portanto é injusto dizermos que perdeu a sua. Na verdade, ele ganhou mais do que já teve em toda a sua existência nesse único dia.
    Mas vida ainda tinha um plano para ele e foi executado mesmo com parcial vontade e consciência de Mike. Só assim para enganar a sí mesmo. A chave que Mike possuía abriu a porta de acesso ao lado Sul do prédio que tinha como vizinho menor um prédio residencial com uma cobertura e nela uma piscina enorme. Foi lá que Mike caiu.
    Já que estava de olhos fechados ficou surpreso com a maciez da aterrissagem. Sentiu muita dor e sentiu que estava embaixo d água. Bateu com as costas no fundo da piscina. E percebeu que a caixa com os sonhos que estava segurando se rompeu com a queda e todos os sonhos estavam espalhados na superfície da piscina.

Mike resolveu ficar ali por um tempo e contemplar a cena.

    No dia seguinte, a vizinha coloca a coleira no cachorro, pega as chaves de casa, sobe o zíper de sua blusa de ginástica e abre a porta de casa. Ela já começa a fazer pequenos alongamentos quando percebe que seu cachorro está lambendo algo. Pára por um instante, olha e pega no chão um sonho, que haviam deixado em sua porta.



Júnior visita lugares estranhos

- Júnior está agora em um incêndio –


    Antes de se envolver pensou que poderia, caso chegasse a essa situação, se safar facilmente. Estava errado. Na cama não consegue pensar em nada melhor do que antes. E o que pensara antes não o ajuda.Se não fosse automático dir-se-ia que resolveu acender um baseado. E se já não fosse automático talvez pensasse melhor antes de fazê-lo. Assim, dischavou, bolou, pilou, acendeu, carburou e tragou forte.


- Junior está em uma tempestade de areia -


    A tranqüilidade que buscou não veio de imediato, á principio vieram as tosses, o pigarro forte e a angustia de antecedência, como um dia de trabalho duro á véspera de um feriado. Mas já sentia se esvair toda confusão e ansiedade anterior, sentia um vento pesado de areia que durou alguns 15 minutos. Agora não queria complexidade, queria tudo simples e amplificado. E conseguiu.


- Junior está na estação de trem do seu destino -


    Pronto, chegou onde queria, ouve canais de sons separados e organizados, seus olhos estão irritados e irrigados, e seu sorriso é solto e farto como se quisesse aproveitar tudo o que lhe resta antes de perder. E sendo assim, é bom que aproveite mesmo.
    Dessa forma, gostava de usar óculos escuros, mas dentro do apartamento não fazia sentido. Pegou os que Diane, certa vez, disse que ficavam legais com camiseta azul, mas usou a cinza. Dinheiro, identidade, seu toca-musicas, tênis, mas não as meias e uma bermuda xadrez. Colocou tudo em seus devidos lugares, desceu as escadas e teve a sorte (Júnior gostava bastante disso) de sentir o vento da rua na hora do refrão da musica. O sol chegava fraco, achou melhor assim. Caminhou até uma pequena pracinha, queria pensar melhor. No caminho sorria sozinho, é coerente já que também se divertia sozinho.


- Júnior está diante de um teatro lotado e seu companheiro de cena acaba de lhe dar uma deixa -


- E agora? - Perguntou-se.

    Pensava nas variáveis, era levado por uma música. Pensava nas opções era levado por outra. Não conseguia raciocinar, somente pensar lhe era oferecido.
    Talvez pensasse melhor agora antes de dischavar, bolar e tragar. Em todas as vezes que se esforçava para desenvolver um raciocínio lógico, era sugado por músicas. Eram canais bastante distintos, qualquer um lhe chamava a atenção, o que ele poderia fazer?

    Desligou a música! Irritou-se e se concentrou como se fosse resolver alguma coisa. Resolveu comer. O único raciocínio lógico que conseguia traçar era escolher, pedir, sentar, mastigar, engolir e pagar. E entre mastigar e engolir estava uma de suas melhores diversões, apreciar sabores e texturas.
    Comia sorrindo, não por fome, mas prazer. Gostava de como ficava o doce, gostava de não se enjoar com ele. Gostava de destruir coisas entre seus dentes, da textura crocante da alface, o picles, o gelo da bebida, o gergelim, a cebola. Era uma bela diversão, nada tinha a ver com fome. Tudo era apenas distração para o que realmente importava as 17:00 horas; convenceu-se com o único argumento que lhe tirava o peso da irresponsabilidade e lhe deixava espaço para pensar em alguma solução antes do desespero o envolver.


- Júnior está em um banquete com a platéia do teatro a céu aberto com mesas de forro branco cujas pontas se levantam quando sopra o vento e as faz dobrar por cima da mesa. A grama é verde -


    Já eram 16:33 não podia mais se dar ao luxo. Lembrou-se porque fez isso, lembrou-se que a tensão o estava matando. Queria um pouco de tranqüilidade e conseguiu distração. E afinal de contas resignou-se, talvez sua última diversão. Não se arrependeu.


- Júnior está agora jogando Xadrez, depois de transar com a mulher que ama -


    Ótimo, mas ele precisava de concentração. Respirou fundo, tratou de se sentir bem. Resolveu voltar para o apartamento e pensar em fazer algo que lhe fosse útil. Salvar sua vida por exemplo.
    Já conseguia desenvolver raciocínios, pensou nas variáveis e se concentrou nelas. Jogou água no rosto e não enxugou. Deixou seu toca-musicas na cama. Lembrou-se de ser avisado pelo vendedor do risco que corria ao comprar erva a prazo, de todas alternativas que tinha para conseguir a grana e que deram errado. Lembrou de toda a ajuda que pediu e lhe foi negada. De toda a ajuda que recusou. E finalmente da última frase dita a ele ao sair com 100 gramas: “Devedor reincidente não tem perdão Jr!”
    Junior agora tem 10 gramas, e sem devolução. Xeque-mate! Foi seu último raciocínio lógico antes de ouvir a campainha tocar.


- Júnior está caindo do avião sem Pára-quedas –

    Vai atender a porta sem respirar o cumprimenta da mesma forma e se esquece de oferecer algo pra beber quando se lembra disso também resolve que não se importa. Pensa que se estivesse com Diane, agora seria a hora do sexo. E afinal, se vê tranqüilo, como se não lhe oferecessem alternativa e se consola com final dessa onda como se já estivesse traçado pelo destino.
    Talvez já estivesse, e o que ele fez foi fumar um baseado para ser levado mais agradavelmente até o fim inevitável. De todo modo, essas respostas ele nunca teria e estava na hora de dar atenção a sua visita, que à essa altura perguntou:

- E ai?


- Júnior está em um labirinto e vê três portas, não sabe o que existe atrás delas, mas é obrigado a escolher uma -


- Não tenho a grana. – Disse.
- Sabia... Então, como vamos resolver isso?
- Você me mata rapidamente e vai embora se esconder da policia. Depois usa minha história de exemplo pros outros devedores.
- Tá fazendo piadinha é? Tá chapado?
- Tô! Minha despedida.
- Tô vendo que tá “rachado”. Então não tem como arrumar a grana?
- Cara, eu bem que tentei, mas parei por aí.

O vendedor tira a arma da jaqueta, pega o capacete da moto coloca no chão e diz:

- Sabe como vou resolver isso não é?



- Júnior esta nú no Alasca pisando em cacos de vidro -



- Merda, só entro em fria mesmo!
- Hã?
- Nada, olha sei que te devo muita grana. Mas se me matar agora não recebe nunca mais. Se me der um tempinho maior recebe toda a grana.
- Acho que não cara. Já conto com o seu prejuízo, é o preço que pago pra você servir de exemplo. Quando te dei a erva, já sabia que você ia ser meu próximo otário, nem te dei uma boa pra não queimar o estoque.
– O vendedor se levanta do sofá, Júnior continua sentado na cadeira da sala. O vendedor aponta a arma pra cabeça de Júnior.

E engatilha o revólver.


- Júnior, que ainda está no Alasca, acaba de engolir um copo de gelo -


Implora. “Calma cara, calma aí!” E implora mais. “Calma, calma posso dar um jeito, sou um bom cliente.”
- Eu to calmo você é que não está.
- Já sei! Calma! Te dou meu toca-musicas, vale mais que a dívida!


Nesse momento se faz necessário esclarecer as intenções de cada um:

    Júnior não iria dar o toca-musicas, era uma questão de honra ter um, sempre quis. Parece pouco morrer por isso, mas viver sem ele também não era interessante. Antes todo esse valor fosse pelo produto, mas o produto só simboliza uma grande vitória na sua vida pequena. É o problema de sonhos medíocres.
    O vendedor de qualquer forma iria matar Júnior e “limpar” o apartamento, mas pensou que era melhor Jr. lhe poupar o trabalho de procurar o toca-musicas. Também queria ver como era e saber o valor para revender depois.
    Júnior está no quarto, nunca se sentiu tão vivo. Procura uma solução nos filmes que assistiu mas acha ridículo pensar em filmes uma hora dessas. Pensa em Diane mas se recusa a desistir e se despedir dela. Pensa em soluções possíveis e lhe ocorre que o vendedor acaba de lhe deixar ir ao quarto sozinho. Lamenta não ter uma arma, pega o toca-musicas e pega seu dischavador em forma de bola 8, coloca o dischavador no bolso de traz, no caminho para a sala torce para que o vendedor seja um amadorzinho. Torce para que apareça alguma solução, torce muito.


- Junior está de novo no incêndio -


“Amador, amador, amador.” Sussurra, talvez se torne realidade.
- Tá aqui.
O vendedor, que não era tão amador assim, pega o toca-músicas com uma das mãos e aponta a arma com a outra.
- Hum, então é essa porra aqui que vai salvar tua vida?
- Eu espero! Mas não é porra não, produto bom e caro. – Quando disse isso já estava com as duas mãos nos bolsos de traz da bermuda.

    O vendedor pergunta como faz pra ligar. Júnior diz que “é só apertar aqui ó” e quando o vendedor olha pro toca-musicas Júnior tira a bola 8 e arremessa com toda força que pôde reservar. Mas sem mira alguma, isso ele deixou para a sorte.
    Percebe que atingiu o olho do vendedor. Se soubesse de suas intenções, perceberia a ironia e diria com um cigarro na boca, “Não estava de olho no meu apartamento, canalha!?” (Júnior gostava de filmes com frases de efeito).
    Mas não sabia e também não pensou no que fazer depois disso. Estava de sangue e pele quentes. Jogou-se como um animal desajeitado pra cima do vendedor. De alguma forma misteriosa conseguiu a posse do revolver. Não mirou (talvez já soubesse que não era tão necessário) e atirou. A bala atingiu o meio do tronco do vendedor e não saiu de lá. Ela o fez cair no sofá, tentou inspirar uma vez não conseguiu e morreu.


- Júnior está em seu apartamento e acaba de matar uma pessoa –


    Júnior pega as duas partes do dischavador sujo de sangue, recolhe seu toca-musicas no chão, dischava, bola, pila, liga o toca-musicas, acende, carbura, traga forte. Agora ele possuía muita erva, um corpo, um revólver e vizinhos. E afinal, não pensa muito nisso, só está ansioso pra dizer sua frase de efeito.

- Seu amadorzinho...

segunda-feira, 28 de março de 2011

Alguns Aforismos de muito tempo atras...

Ensaio à Sanidade

Todos no hospício são normais pra mim.
A loucura não está nos insanos, está nas pessoas normais.
Os loucos nao fazem loucuras, só coisas normais pra eles. Quem as pratica somos nós, e quem pratica a loucura é louco.


Ensaio à Justiça

A vingança é justa. O pressuposto de que, para que haja justiça é preciso reparação dos danos do prejudicado por terceiros, é tão impróprio quanto ineficaz. Apenas quem perdeu pode avaliar os danos e ressacir-se de equivalências.


Ensaio à Honestidade

A honestidade só é um dom quando se vive fora dela. Quanto mais fácil pecar, mais difícil não pecar. Assim, só é honesto quem pode, com frequencia, ser desonesto ou será consequência e não escolha.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Eu conheço uma pessoa

Como muitas que existem, é estável. Porém sua estabilidade consiste no exercício diário de percorrer limites.

Para todas as coisas existe um piso e um teto, e sendo assim, existe o meio: o local de conforto e segurança onde a maioria se encontra.

Essa pessoa não consegue viver no meio, quisera ela passar a vida lá, mas não consegue. Há tempos lutou para chegar a esse lugar, e a luta até lhe agradou, o local não. Assim descobriu que seu lugar é em essência mutável.

É transitando entre limites que ela se percebe como pessoa em cada uma das situações. Flutuando entre o mínimo que algo pode ser e seu máximo, ela descobre tudo o que se pode sentir. E isso é essencialmente o que a faz gostar tanto da vida. É na verdade o que a move em um deslocamento contínuo de vícios, paixões, amores, brigas, ódios e sensações.

Imersa em algo, não lhe satisfaz a serenidade. Estica e as vezes ultrapassa a linha limite. Sempre se aprofunda e volta à superfície. Faz o mesmo com o que há de ruim e retira dele a experiência de tocar o fundo e se salvar de lá.

Eu sei disso, mas ela não sabe. Para ela é tudo instintivo. O que move suas escolhas é uma lógica simples, cimentada já, em um lugar onde ninguém tem a mínima influência.

Não tentem, eu próprio não me atrevo, é dela! E sendo dela, meu também.

Uma força própria e incontrolável de quem tem em si e empiricamente o que todos apenas dizem. As experiências impostas que todos se negam a se sujeitar quando lhes é oferecido escolha. A maturidade emocional e social de quem já esteve de todos os lados e acha natural o incerto. A liberdade de escolha de caminhos de quem sabe que, todos eles levarão ao mesmo lugar.

E, afinal de contas, o que ela sabe bem é que a continuação de seu caminho deve vir recheada; transbordando vida, de todas as formas e cores e sabores e texturas. Só assim saberá quem era e como viveu seu tempo.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Ninguém me conhece

Tenho em mim todos os sentimentos do mundo. Não estão presos, tampouco soltos. Não estão classificados, nem separados. Alguns não deviam sair, outros deveriam.
Não sou eu que os tenho, cada um ou todos, me possuem em determinado momento e me soltam quando não os proporciono matéria para que sigam. Meus sentimentos são criados e crescem.

De muitos me orgulho, a maioria escondo porque é necessário, por mim, brincavam na rua e se divertiam, talvez assim se tornassem sentimentos melhores. Mas como são eles que me possuem isso é, na maioria das vezes, difícil.
Pegam-me de jeito, fazem de mim pessoas que não sou, pessoas que repudiaria. E sendo assim, é inútil minha luta para tentar descobrir quem o sentimento faz de mim. Se ao menos soubesse com qual deles estou lidando seria mais fácil. Eles vêm em grupos, misturados e disfarçados.

Safados! Fazem-me assim e assado. Não lidam com as conseqüências, fazem delas mais um canal para que saiam. Saem de mim e encontram os de outros, conversam, discutem, amam, odeiam. E eu assisto inerte e confiante. Mesmo o pior deles encontrará seu par e o resultado disso sou eu e será alguém. Alguém que de algo em comum, tem com um de meus sentimentos, não comigo.

Ninguém me conhece. Sou um recipiente, às vezes me fazem transbordar, mas nunca me deixam vazio. E apesar da racionalidade aparente aqui, não estou só, não sou eu.

Ela dança e dança e dança mais

Eu não acredito no seu cabelo, não duvido de sua beleza e tão pouco espero que seu olhar me atinja. Já basta! Se basta, assim de longe. De perto há medo.
Como se meu medo não fosse suficiente, tenho medo por ela, medo de que ela deixe transparecer toda a insegurança das esbeltas. Medo de que ela deixe a mostra todos os detalhes que não queremos ver. Medo de que ela revele a capacidade irrefutável das mulheres bonitas em ser constrangedoramente idiotas.

Todos esses medos eu superaria, o único intransponível, a barreira final que me separa de tua beleza esvoaçante como folhas de outono ao vento. É incontestavelmente a chance. A chance com a qual eu viveria eternamente feliz em não saber. A chance de você ser encantadoramente amigável e desafiadoramente capaz de me fazer sorrir. Não! Não te darei essa chance.

A peleja de Diana e suas rimas

Ainda moça, a gozação era tamanha.
Na alfabetização, a alegria era rimar com Diana.

Mesmo crescida, se tornando uma moça vistosa
Nem pedreiro arriscava um “gostosa”.
No povoado encrespado entre montanhas
Todas as rimas terminavam com “anas”.

Era mercearia com nome de Suzana.
Era o bar da Sebastiana.
Mas entre tanta “ana”,
Quem fazia sucesso mesmo era a Casa da Mãe Joana.

E ela, a Diana,
Quando muito, saia da cama.
Quando pouco nem comia.
Tão magrela, que de lado, mal se via.

É de se espantar, o povo faz e nem percebe,
por conta de gozação, de perseguição.
Um nome bonito, uma moça alegre
Resolveu fazer pacto... logo com o cão!


Belzebú gozador por natureza,
como era de se esperar.
Antes de aceitar o acordo, fez a fineza
de não perder a chance de rimar.

“Diana pele de escama.
Diana sobe a montanha.
Diana que não se ama.
Diana que assovia e chupa cana.
Diana não saia de casa com pijama.
Diana, senta e abre a sua...”

Diana moça de família e educada.
Agüentou o carrancudo calada.
O que é um peido pra quem já tá cagada?

Mas o capeta tinha mente rasa,
mesmo com muitos publicitários no inferno.
A criatividade era escassa.

Terminando as rimas, da sua voz quis fazer mais uso.
Perguntou pra Diana
Porque uma atitude tão estranha.
Já que só o procuravam como último recurso.


Diana com voz trêmula se lembrou do dia no cartório
Lembrou do que disse seu velho pai, o senhor Onório.

“Filha minha não se chama Marieta
Porque rima com...
E nem vai se chamar Catarina
Também tenho medo dessa rima.
Até que Maria não cai mal
Mas receio que rimem com certo animal.
Poderia ser socorro,
Mas rima com coisa que dá nojo.

Tá decidido! Tua graça vai ser mesmo Diana
Que só tem rima inocente.
E deixo o primeiro filho da puta de cama,
que inventar um apelido indecente.”

“Por isso tô aqui seu capeta,
Pra usar um tantinho do seu poder.
Queria lhe pedir uma gentileza,
que só o senhor pode fazer.

O senhor pode estranhar o pedido
até parece sem noção.
Não quero desrespeitar meu pai falecido.
Mas quero me livrar da maldição.

Imagina o senhor como seria
Os capetinhas rimando belze-bú
todo santo dia.”

Satanás esbravejou, por conta dos dias santos.
Mas se comoveu com a sina da coitada,
durante todos esses anos.

O maldito atendeu seu pedido
Sem cobrar tua alma por isso.

Hoje quem era Diana, por ironia do destino.
Não precisa mais se agachar pra mijar.
Virou um moço vistoso que se chama Murilo.
Que é muito mais difícil de rimar!