Mike acorda, abre os
olhos, se olha no espelho do guarda roupas e não vê seu corpo. A confusão de
cobertas, travesseiros e ele em sua cama, lhe permite enxergar apenas sua
cabeça. Era como se todo o seu corpo estivesse sumido.
Sorri um sorriso de
lamento e autodesistência. A essa altura, era sua verdadeira imagem, a que
todos enxergam e que se tornou latente mesmo diante de seus esforços para
escondê-la, que lhe encarara.
Gastou quantidade
considerável de tempo para escovar os dentes. Queria limpar sua boca, queria
que fosse suja. Enfiar a escova pelas veias; canais de imundície que
transportariam o combustível da maldade. Escovar os cantos do cérebro, que
bendito seria, se fosse um depósito da escória que ele não possuía. E quem sabe
num gargarejo cuspir toda substância na pia. Não havia, e se houvesse sujeira,
estaria depositada na falta de uso, nas estantes empoeiradas de sua inércia.
Mike era um vácuo.
Nunca se sentiu preenchido de vida, não se lembrava de qualquer empolgação escalar
alguma vértebra sua. Não possuía arrependimentos, nenhuma de suas ações lhe
custou consequências maiores que resignação.
Hoje, especialmente,
decidiu tomar seu café da manhã fora. Ao abrir a porta de casa percebeu o sol
no rosto, não por acaso, fez sombra nos olhos com uma das mãos e por um
instante avistou a vizinhança, como terra firme. Mães levavam as mochilas de
seus filhos até o carro. Um casal conversava sobre o que iria fazer a noite.
Uma vizinha fazia Cooper enquanto levava o cachorro para passear. Sr. Arnaldo,
o dono da padaria no final da rua, colocava as frutas frescas na calçada para a
venda.
Pensou, “De hoje não passo.”
A um passo da escada
do alpendre de casa, resolveu despender a mesma quantidade de energia que usou
para dar qualquer passo em sua existência; nenhuma. Sendo assim, mãos brotaram
do solo e dos degraus da escada. O seguraram com todo cuidado (ou Mike
protestava) e foram o levando até seu destino; a padaria. Entre as mãos, que
eram muitas, várias lhe eram familiares: as de sua mãe e pai, suas professoras,
seus treinadores dos esportes que era obrigado a praticar, seus amigos, suas
poucas e rápidas namoradas e seus patrões. Também havia algumas das quais não
conseguia se recordar. Percebeu que o acaso e a sorte já cruzaram seu caminho
mais do que gostaria.
O deixaram
suavemente na cadeira de madeira que fazia jogo com a mesa ao lado da grande
janela que tinha como vista a rua de seu bairro tranquilo onde os vizinhos não
se intrometiam na vida uns dos outros. Mike brincava de adivinhar o que as
pessoas estavam pensando sobre ele, era uma das poucas coisas que o divertia,
mas as conclusões à que chegava, quando estava certo de que sua adivinhação
condizia com a realidade, não.
- Bom dia Sr. Mike. O de sempre? –
Disse Sr. Arnaldo, sem esperar resposta.
De tão desconhecido, a vizinhança já
sabia seu nome.
- Bom dia. Hoje vou querer um pão de
queijo, um pão passado na manteiga e um cappuccino duplo, por favor.
Não era o de sempre, Sr. Arnaldo
estranhou. – Pra viagem?
- Não, vou comer aqui mesmo. Mas
gostaria de levar alguns sonhos, o senhor tem sonhos?
- Certamente Sr. Mike, dos melhores e
fresquinhos!
“Eu não”, pensou Mike. – Ótimo, vou
levar alguns.
Comeu, pagou e ao
ser-lhe entregue o saco com os sonhos, reprimiu o esforço do Sr. Arnaldo em tentar
estabelecer mais intimidade fazendo perguntas sobre a nova vizinha, com um: –
Não, não vi.
No caminho para sua
casa deduziu que a vizinha de quem Sr. Arnaldo falava era a moça do Cooper e do
cachorro, ela estava voltando e provavelmente iria cruzar seu caminho. Em Mike
restavam poucas energias sociais, já que a conversa na padaria exigiu um
tremendo esforço. Portanto tratou de rejeitar a ideia em sua cabeça de oferecer
um sonho a ela e se agarrou na chance de seu cachorro não gostar de uma
aproximação e tentar mordê-lo. Assim estava feita sua desculpa autoindulgente.
Eram essas pequenas possibilidades de falhas que o ajudavam na tarefa de não se
arrepender, afinal de contas, “Com um cachorrão daqueles, é melhor eu me manter
longe”, pensou.
Convenceu-se de que
estava fazendo a coisa certa e diminuiu o passo, quebrando a trajetória que o
levaria, com certeza, ao feroz ataque de um Basset. A vizinha passou por ele
com o cachorro ao longe e lhe apontou um sorriso amistoso. O cachorro não,
porém não rosnou. Mike retribuiu o sorriso (agora sim estava exausto) e
continuou seu caminho. Antes de ligar seu carro, estacionado na porta da
garagem de sua casa, ainda pensou “Se não fosse esse maldito cão!”.
Mike não era feio
nem bonito. Não era alto muito menos baixo. Tão pouco gordo e sequer magro. Um
pesadelo de descrição para qualquer profissional da perícia policial. Um
legítimo cidadão mediano, não fosse medíocre. As características que o definiam
psicológica ou fisicamente se escondiam de qualquer um que tentasse se
aproximar em algum desses aspectos. Então restava aos vizinhos caracterizá-lo
com atributos externos a ele. Ninguém o conhecia tão bem para saber seus
gostos, mas isso era compensado com a informação, já pública, do que ele não
gostava: conversar.
Ligou o carro e partiu para o trabalho.
No caminho ganhou a
percepção aguçada do último dia. Um bônus, que o deu algo para sentir. Não era saudade,
nostalgia ou esperança. Convenceu-se, sinceramente, que não estava perdendo
algo. Até para ele essa decisão era muito difícil. Suas desculpas autoindulgentes
não eram o suficiente para fazê-lo lançar-se no desconhecido.
A decisão não foi
tomada hoje. Mike já se esforçou em participar de algo, tentou algumas
religiões que, cumprindo bem seu papel social, o fizeram parte de um todo.
Durante algum tempo, um grupo social o acolhia, se importava e lhe dava uma
função, mas não um sentido. A fé não foi o suficiente para preencher a imensa
lacuna de respostas das quais ele necessitava.
Durante o caminho
avistou um moleque que pedia esmolas no sinal. Passou direto sem olhar para o
garoto (mas não sem o vigiar). Parou o carro adiante, onde era permitido e o
chamou.
O menino, empolgado
com a possibilidade de ganhar uma gorda esmola, não pensou nas possibilidades
de falhas. Se tivesse um rabo, chegaria abanando-o. Mike respirou fundo e se
encheu de energia suficiente para disfarçar um sorriso de simpatia. Todo o
esforço porque, afinal de contas, queria fazer o garoto se lembrar do que é
importante na vida. Talvez o garoto lhe fizesse lembrar também. Pensou em dois
argumentos para manter uma conversa, o primeiro deles era mais fácil.
- Ei tio, tem uma esmola aí?
- Tenho. Toma aqui é toda sua. – Mike
entrega uma nota de 100 para o garoto.
- Caralho Tio! Quer que eu dê uma
limpeza interna?
- Não obrigado, eu mesmo estou
limpando-o. Está com fome?
- Tô!
O segundo argumento lhe exigia um pouco
mais de tato.
- Eu tenho sonhos garoto, você tem?
- Não tio, me dá um?
- Dou, mas não estou falando desses
sonhos aqui, estou falando dos desejos que tem na sua vida, você sonha com o
que?
Mike entrega um sonho de padaria para o
moleque.
- Ah, com muita coisa, ser rico! Ter
família. Sair dessa vida ruim. Sumir de vez.
A ordem dos desejos
do garoto trouxe em Mike um sentimento de identificação pelos tempos em que ele
próprio tinha as mesmas prioridades. Porém tão logo Mike deu alguma importância
à ele, o sentimento se desfez no ar quando o garoto o perguntou:
- Você é rico?
- Não. – Disse sem relutância.
Também não era
pobre. Mike tinha a mesma relevância para a economia de uma cidade, que costuma
ter para as pessoas que o conhecem, nenhuma. Por outro lado, ficando tanto
tempo em um emprego, sendo solteiro e gastando tão pouco com supérfluos não é
de se estranhar que tenha uma vida confortável. Carro, dinheiro para viagens e
casa de aluguel por escolha.
- Porque quer sumir?
- Não gosto desse lugar, aqui tem muita
gente que só pensa em se aproveitar ou fazer mal aos outros. Não entendo isso.
- Qual seu nome garoto?
- Já devia saber.
- Olha Rapaz, você ainda é muito novo
pra desistir dos seus sonhos. Pedindo esmolas, vivendo à margem da sociedade,
não vai conseguir alcançá-los. Cadê sua família? Você tem casa?
- Tá, olha muito obrigado pela ajuda,
acho que tenho que ir agora, vou comprar um café.
O garoto começa a se afastar deixando
claro que não queria mais intimidade.
- Calma, não precisa se afastar, não
vou te dar os sermões de sempre. Te dei uma nota de cem para que você escutasse
o que eu tenho a dizer, pode ser?
Mike não queria que
o garoto o deixasse aquilo estava ficando interessante. E em um desses momentos
onde um arroubo brilhante de criatividade transpassa o cérebro tão rapidamente,
que ao percebermos seu aparecimento, como um raio, há tempo suficiente apenas
para se agarrar no todo. E apenas isso já nos faz perceber sua imensa
importância, de tão lógica e coerente com o contexto que vivemos é essa idéia.
Tão clara e concisa que apenas seu rastro já é o suficiente para nos enchermos
de um orgulho soberbo; daqueles que só possuem os grandes de espírito e
conscientes disso.
- Hum...
- Olha garoto não tenho sonhos. Nenhum.
Os que me fez lembrar que eram meus antes já não são mais. E a maioria deles já
era para eu ter alcançado. Portanto vamos fazer o seguinte eu troco um dos que
você tem, por esses que eu tenho.
- Hahaha, quer um sonho de verdade por
um sonho de padaria?! Nada feito! Meus sonhos de verdade valem muito mais!
- Você não vai usá-los e considere isso
uma doação, você me dá um sonho e fica com a lembrança de cumprir os seus. Além
do mais, me dando um sonho seu, não o perde, ele apenas se duplica em mim, você
ainda pode realizá-lo. Ok?
- Hum, ok pode ser, vamos ver aqui qual
sonho tenho pra você. Você viaja muito?
- Não
- Hum, tem esposa, filhos, namorada?
- Não
- Gosta de quê?
- Olha garoto, assim não vai funcionar,
são seus sonhos! Escolhe um e me dá, tá aqui o seu!
- Opa, dá aqui!
- Então?
- O garoto ainda mastigando diz: - Faz
o seguinte, tenha um filho e se prepare para ele, dê muito carinho, amor e o
eduque bem, faça ele feliz. Pronto.
- Ok, obrigado. Olha tenho que ir
trabalhar, a gente se vê. Mas considere esse sonho um símbolo de que você terá
que cumprir o seu... Obrigado.
Apesar da aparente
indiferença Mike ainda estava soberbo com a faísca criativa que se estalou no
seu caminho. A conversa com o garoto e a idéia de compartilhar ou trocar sonhos
foi repentina. E com os dados que já dispomos, qualquer um poderia supor que
ele não fez disso parte de um planejamento anterior. A idéia e a ação vieram
tão bruscamente que Mike não teve o tempo necessário para, além de entendê-la,
decidir se é uma ideia estúpida ou não. Assim se livrou do garoto o mais rápido
possível usando o que já era quase automático em sí, a indiferença.
Depois de deliberar
consigo no caminho para o trabalho venceu a discussão com suas características
predominantes, como a autoindulgência o pessimismo e a preguiça social, com uma
única frase que, nesse dia, era a única chance de usá-la: “O que eu tenho a
perder?”.
Mike estava
dividido. O motivo era óbvio, uma empolgação juvenil com uma tarefa a cumprir o
deixou excitado, querendo executá-la logo. Queria pessoas, trocar os sonhos
reais delas com os únicos que ele possuía. Claro que essa sensação não veio
somente pela diversão de cumprir sua decisão. A excitação que Mike sentia vinha
em grande parte da natureza dessa tarefa e da possibilidade que ela tem de
jogar alguma esperança sobre sua superfície insípida.
Já havia
decidido trabalhar, não mudou de idéia. Chegou à sede da empresa e foi para o
14º andar num prédio de 28. Conversa com poucos colegas de trabalho, somente
aqueles que têm por Mike pena e paciência suficiente para tratá-lo como um
pseudo depressivo. Pensavam que ele não tinha muito do que reclamar, um emprego
honesto, uma vida estável e saúde. Para a grande maioria das pessoas isso era
suficiente para, pelo menos, cimentar as bases da felicidade.
O que ninguém
percebia em Mike era que justamente esse vazio entre o básico que muita gente,
inclusive ele, possuía e o máximo que ele poderia querer, o incomodava
profundamente. A ponto de acabar com suas esperanças de alcançar. Para ele as
pessoas que não possuíam o básico passam a vida lutando para alcançá-lo e
quando alcançam podem tomar isso como felicidade. Também há aquelas pessoas que
já possuem o básico e lutam para alcançar o máximo; empregando o mesmo
raciocínio temos o mesmo resultado. E ainda existem aquelas que alcançam o
básico e buscam o máximo, essas eram curtidas em ambição, perseverança e vida.
E como é razoavelmente fácil de perceber,
Mike era um vácuo.
Talvez essa
constatação viesse de seu inseparável sentimento de inadequação. Já não era
fácil ser uma criança com nome estrangeiro e continuou difícil quando se
juntaram a ele a certeza de não entender porque as pessoas agem da maneira que
agem. Ele não sabia seguir as convenções sociais. Só aprendeu o suficiente para
conseguir sobreviver, fugia de qualquer tarefa social mais complexa. Há 35 anos
Mike era como um estrangeiro recém chegado, só se ouvia dele sentenças básicas e
concisas da língua. Desconfiava de relações mais íntimas, e fazia questão de
demonstrar isso.
Era metade da manhã tempo suficiente
para entendermos porque Mike já havia desistido de sua vida.
- As vezes, não precisamos jogar fora, é só reiniciar.
O computador de sua
mesa costumava dar defeito. Hoje Mike achou que não tinha mais jeito, porém o
técnico chegou á tempo de impedir que Mike jogasse o computador no lixo. Ele
desistia fácil diante de obstáculos, e podemos fazer dessa, uma afirmação que generaliza
quase todas as suas ações até hoje.
Mas a frase do técnico fez Mike incluir mais uma opção para si mesmo. E se reiniciar fosse a solução?
Não que,
especialmente hoje, a vida de Mike se encheu de metáforas e despejou em cada
conversa um sentido diferente para sua existência. Na verdade, era Mike que
estava diferente, o bônus que ganhou no dia de hoje o fez altamente receptivo a
novas percepções. Talvez os simbolismos nas conversas estivessem sempre lá e
ele não percebeu. Também com tão poucos exemplos de uma boa conversa ele estava
estatisticamente desfavorecido. Talvez seja esse o grande segredo, saber
perceber as dicas que a vida lhe dá. Ou pode ser a vida lutando para não se
extinguir de dentro dele, num impulso supremo de autopreservação, imprimindo um
pouco mais de dimensões e escalas aos olhos, coração e mente de Mike.
Mas Mike não era
otimista. Chegou a conclusão que estava passando por um efeito comum a si
mesmo: quando passa uma semana se decidindo a cortar o cabelo, no dia do corte,
seu cabelo acorda bonito e vistoso, quase o fazendo mudar de idéia. Ele tratava
a vida como sendo exterior a ele. Uma força que o manipula como bem entende. E
para a diversão dela, sempre que tomava uma decisão, a brincalhona o fazia
quase mudar de idéia, quase mudar o rumo do caminho que havia traçado, pouco
tempo antes de segui-lo. Assim como o cabelo é mais bonito antes de cortar, a
vida de Mike se tornou mais rica antes de terminar. Porém, como cometer
suicídio todo dia?
Essa sensação ele só
teria hoje e não era o suficiente para compensar os trinta e cinco anos
restantes. Então o que ele poderia fazer é aproveitar o melhor disso até
acabar, assim sendo, sua idéia se encaixava perfeitamente.
- Você tem sonhos?
- Tenho alguns ainda. Por quê?
Felipe não estranhou
a pergunta por que, não o conhecia o suficiente para esperar algo. E isso traz
para Mike a liberdade de não ser cobrado. Espera-se que um louco diga loucuras,
que um comediante conte piadas e que um padre fale sobre Deus. Se um deles
frustra nossas expectativas achamos estranho. O que constrói a anomalia é a
sucessão da normalidade e vice e versa. Uma das poucas vantagens de Mike é ser
uma tela em branco, ninguém sabe o que esperar. Não é estranho porque não é
normal.
- Também tenho alguns, quer fazer uma
troca?
- Como assim?
Mike não usava
drogas, apesar de ter usado durante pouco tempo, percebeu que elas encurtariam
sua vida antes do que ele gostaria. Triste ironia hoje. Aprendia rápido, tinha
um bom raciocínio lógico, que usava de maneira quase artesanal para tecer uma
comunicação necessária e suficiente para ser entendido, não mais que isso.
Explicou sobre o que estava fazendo com os sonhos. E depois de ouvir algumas
opções do técnico como, criar algo novo e imensamente lucrativo na internet,
vender quando chegar a 10 bilhões de dólares, pular nu na piscina da cobertura
ao lado, e criar uma maquina que gela tão rápido quanto o microondas esquenta.
Achou que inventar um sistema em rede de ajuda financeira á países pobres era o
mais razoável deles.
Mas o técnico não
era tão discreto quanto Mike. E apesar de sabermos que não é aconselhável
compartilhar de sua insipidez, o caso do técnico era que extrapolava o oposto.
Com isso, todo o andar ficou sabendo que Mike estava trocando sonhos de padaria
por sonhos reais.
Uma quantidade
imensa de pessoas (cinco ou seis) se aglomerou na mesa de Mike para fazer a
troca. Era quase hora do almoço, muitos só estavam com fome e alguns
interessados no que Mike queria dizer. A única unanimidade da reunião
extraordinária era a curiosidade.
Mike previu que ia
ficar sem sonhos, portanto definiu e anunciou algumas novas regras. “Um minuto,
por favor, vou receber todos os seus sonhos por escrito, e selecionar entre
eles o mesmo número de sonhos que ainda me restam. O critério de seleção
será... pessoal, e á medida que me decidir por alguns sonhos vou entregando os
meus próprios. Quem se interessar pode deixar seus sonhos em minha mesa, nessa
caixa. Vou sair para o almoço, bom apetite a todos.”
Mike não tinha nada
planejado para seu último almoço, contudo não achou isso o uma absurda falta de
planejamento e ineficiência. Não há o que se lamentar, não tinha um prato
favorito e tão pouco algum que achasse mais especial que o de sempre. Na
verdade ele achava o de sempre o mais especial, pois o comia todo dia. Então,
apenas para se livrar do peso que pode deixar sua alma presa á terra até pedir
um prato diferente, pediu uma massa.
Não era o de sempre.
Tentou achar algum simbolismo no fato de pedir massa. Desistiu. Sorriu. Mike
estava de bom humor.
Voltou ao escritório
para descobrir se alguém havia deixado algum sonho, sentou, colocou a caixinha
no colo, olhou para os lados e todos estavam o olhando com olhos esperançosos,
grandes e brilhantes. À principio, Mike ficou preocupado com a possibilidade de
alguém ter deixado uma bombinha ou uma surpresa humilhante dentro da caixa,
apesar de não estar mais no colégio. Tão logo não se preocupou mais com isso,
abriu a caixa. E estava lotada de sonhos, muito mais que os seis ou sete
anteriores.
O trabalho de
filtro, classificação e seleção tomou boa parte de seu horário da tarde. Já
possuía bastante material para compor uma lista: matar o chefe, ganhar na
loteria, paz mundial, fim da miséria, comprar um iate, helicóptero, avião,
matar o vizinho, ser um astro do rock, cinema, TV, ser presidente da empresa,
explodir o prédio da empresa. Na verdade Mike tinha material suficiente para
classificá-los por temas. Matar pessoas famosas e superiores; ser outras
pessoas, geralmente famosas; bens de consumo exagerados; causas nobres;
mudanças estéticas, que incluem membros adicionais e etc. Essa lista possuía
todos os sonhos descartados por Mike, obviamente.
Do lado esquerdo
colocou os sonhos que se classificaram segundo os seus critérios. Também
definidos por categorias: viagens, noitadas, vandalismos em grandes
corporações, coisas que você nunca fez, fantasias sexuais, entrar para o
Guinnes Book de alguma forma, mudanças estéticas possíveis, fazer ou participar
de filmes, musicas, livros, quadros, esculturas e desenhos. Mike tratou estes
com mais carinho e até pensou na possibilidade de realizá-los. Também achou
desperdício tantos sonhos que nunca chegarão a existir em outros lugares que
não seja imersos no formol que ocupa a mente dos preguiçosos, onde se mantém
intactos até sua morte.
Continuou vasculhando a caixa e
encontrou uma chave.
Mike ficou bastante
confuso sobre quem poderia ter colocado e o seu significado, mas achou normal,
depois de uma ação incomum dessas, alguém não perder a chance de se aproveitar
da situação.
A chave lhe pareceu
familiar, pois já fazia parte de seus planos. Inicialmente Mike pensou em subir
até o terraço do prédio e pular. Na verdade essa era apenas uma das varias
formas de morrer que lhe pareceu considerável. Remédios e pulsos abertos não
lhe interessavam pelo seu caráter lento e sofrido. Da mesma forma fogo,
afogamentos e enforcamentos. Tiros ou atropelamentos intencionais
impossibilitavam caixões abertos. E quando Mike se perguntou por que estava
preocupado com um caixão aberto ou não, decidiu-se por uma morte condizente com
sua vida, deixando-se levar. No caso, pela gravidade.
Para subir até o
terraço ele teria que conseguir a chave, que tranca a porta de acesso, com o
zelador. Claro, isso não o impediria e seu plano B era simplesmente se jogar da
janela. Mas agora que tinha chave, poderia usufruir de uma morte mais digna,
pensou.
Mike agora tem em
suas mãos a caixa mais paradoxal que já teve contato. E as questões contidas
nela, falham miseravelmente em complexidade perto do que está lidando em sua
cabeça.
Com pressa, Mike
distribuiu aleatoriamente seus sonhos de padaria restantes para algumas pessoas
de quem havia gostado dos sonhos. E em menos de quinze minutos estava descendo
de elevador, até o zelador, que ficava no subsolo e era o principal suspeito de
colocar a chave na caixa.
- Veio rápido Mike. - Disse o zelador.
- Estava me esperando?
- Eu e você gostamos de ser sintéticos
então pulemos as perguntas inúteis e vamos direto ao que interessa. Sei o que
planeja. A chave que deixei se encaixa melhor do que todos os outros sonhos.
Não acha?
- Me conhece? Porque fez isso?
Conheço você tão bem quanto me conheço.
O seu coração vazio, seu olhar vazio, sua vida vazia; tudo isso me é bastante
familiar.
- Quem é você?
- Somos uma sombra. Eu e você somos
observadores da vida. Expectadores invejosos que se corroem com a felicidade
alheia por não compreenderem porque não tem a mesma sorte. A única diferença
entre nós, é que você nunca vai chegar a ser o que eu sou.
- Olha me desculpe, mas você
interpretou mal. Não era bem isso que pretendia...
- Mike, a chave só foi a minha opinião
entre as outras que deve ter visto na caixa.
- Não estou entendendo. Porque me quer
morto?
- Sei que pretende se matar. E o meu
conselho á você através da chave é que faça isso.
- Como sabe?
- Porque se não o fizer, eu faço Mike.
- Eu devo estar muito louco hoje.
- Ambos estamos, mas te entendo, não
está acostumado a lidar com essas coisas.
- E não vou me acostumar não é mesmo?
- Mike, não desperdice o amor de
ninguém. Nem o ódio. Não faça alguém assoprar cinzas ao mar tentando alguma
ligação com você. Nós dois sabemos aonde isso vai dar. Não é por acaso que teve
que descer até chegar a mim. Confesso que pensei na possibilidade de você, ao
invés de se matar, matar a todos no prédio por ódio. Mas esse sentimento eu sei
que você...
-... Não tenho, já sei! Puta merda...
- Escute, saia de seu lugar de
conforto, onde quem não interage com a sociedade não tem responsabilidade sobre
ela. O seu alheamento é parte integrante do todo, mais cedo ou mais tarde vai
perceber. E você não tem nada de bom a oferecer, sua interação só pode ser
maléfica.
Mike não sabia como
lidar com isso. Para ele eram tantos sentimentos, e em tal variedade, que seus
receptores, quase virgens, não agüentaram o fluxo intenso.
Mike tinha em uma
Mão a chave e na outra a caixa cheia de sonhos trocados. Olhou para uma de cada
vez sem pressa. Apertou forte a caixa e a chave em suas mãos. Fez uma pausa.
Abaixou a cabeça e disse:
- Você tem razão.
Era a vida se
mexendo dentro de um caixão. E Mike sentiu isso. Sentia fisicamente como uma
overdose de adrenalina que fazia todo o seu corpo tremer. Como segurar uma faca
após matar alguém com ela. Ou como encarar a morte face a face e escapar sem
explicação. Um momento, suspenso do mundo, que lhe conforta antes que a
realidade lhe inunde.
Mas Mike já estava
farto desse lugar, foi movido pelos seus músculos intensamente até voltar para
as escadas. Chegando lá, subiu decididamente até o vigésimo oitavo andar sem
parar. Mike suava e se deliciava. Mal conseguia respirar e estava em êxtase.
Suas pernas doíam tanto que mal lhe mantinham em pé, mas era assim que sabia
que ainda continha vida. Estava raspando a panela.
Chegando ao seu
destino existiam duas portas, uma de frente a outra. Mike tentou abrir uma com
a chave e não conseguiu, tentou a outra porta e a chave a abriu.
Sentiu o sol no
rosto, não por acaso, fez sombra nos olhos com uma das mãos e por um instante
avistou o sol se pondo no horizonte delimitado pelo parapeito do prédio.
Mike respirou fundo
e, mesmo com as pernas doídas, arrancou. Correu com tal dedicação que as mesmas
mãos que brotaram do chão de manhã precisaram surgir novamente tentando o
impedir de pular. Porém foram ignoradas pelas suas pernas como se tivessem a
mesma força de atrito que gotas de chuva. Mike sentia tanto vigor em seu físico
que se gabou em saber que tinha muito mais força para aplicar do que precisaria
para o salto.
E saltou. Ainda segurando seus sonhos.
Teve tempo de ver a
rua entre seu prédio e o prédio vizinho e a janela logo abaixo. Olhou para cima
viu o céu. Fechou os olhos e caiu em silencio.
Mike tinha razão, a
vida era externa a ele, ele nunca a possuiu. Portanto é injusto dizermos que
perdeu a sua. Na verdade, ele ganhou mais do que já teve em toda a sua
existência nesse único dia.
Mas vida ainda tinha
um plano para ele e foi executado mesmo com parcial vontade e consciência de
Mike. Só assim para enganar a sí mesmo. A chave que Mike possuía abriu a porta
de acesso ao lado Sul do prédio que tinha como vizinho menor um prédio
residencial com uma cobertura e nela uma piscina enorme. Foi lá que Mike caiu.
Já que estava de
olhos fechados ficou surpreso com a maciez da aterrissagem. Sentiu muita dor e
sentiu que estava embaixo d água. Bateu com as costas no fundo da piscina. E
percebeu que a caixa com os sonhos que estava segurando se rompeu com a queda e
todos os sonhos estavam espalhados na superfície da piscina.
Mike resolveu ficar ali por um tempo e
contemplar a cena.
No dia seguinte, a
vizinha coloca a coleira no cachorro, pega as chaves de casa, sobe o zíper de
sua blusa de ginástica e abre a porta de casa. Ela já começa a fazer pequenos
alongamentos quando percebe que seu cachorro está lambendo algo. Pára por um
instante, olha e pega no chão um sonho, que haviam deixado em sua porta.